ENCONTROS CIVILIZADOS

RESILIÊNCIA

Do latim resili, “capacidade de regressar ao estado normal” após uma disrupção ou excitação de maior ordem. Implícita a robustez e a flexibilidade do sistema, que possibilitam o regresso ao seu ponto de equilíbrio, sem mudar, possivelmente de forma irreversível, plasticamente a sua constituição. A memória dos eventos que testam o funcionamento e o equilíbrio de um sistema, aumentam a resiliência desse mesmo sistema.

RESISTÊNCIA

Do verbo latino resistere “ficar firme, aguentar”, formado por re- “para trás, contra”, e "sistere", “manter a posição”. Estado ou qualidade de se manter rígido perante quaisquer adversidades. Reação negativa (ofensiva ou defensiva) contra uma ação ou influência externa, quando a adaptação não é opção por falta de tempo ou de capacidade de resposta gradual.

DOMESTICAÇÃO

Do proto-indo-europeu dem e do sanskrit damah, que dão origem ao grego domus, que significam “casa”; originalmente carregando o sentido de um lugar ou situação, cujos recursos se encontram sob especial domínio de uma dada entidade. Processo de adaptação de algo ao contexto doméstico, por oposição a estados mais livres e autónomos de existência que não sejam particularmente afetados ou influenciados pela gestão ou controlo do contexto dominado pela entidade dominadora.




“Lá um bocado de terreno que pertence à nossa senhoria. E ela não tem só este terreno, aqui. Tem lá no gato, por lá cima, é tudo dele! E o campo que o Manuel faz, também é dela. Tem lá umas casas também. E tem ali, tem ali na rua... Aqui é um campo, tem o campo de baixo, também é dela.” - A

Neste espaço mais longe da Adega, temos um campo que nos foi emprestado. Com a dificuldade de acesso e longevidade incerta, pensámos em como melhor poderíamos povoar este terreno, com estratégias a curto-prazo de pouco manuseamento. Este canto está rodeado de campos de ciclos curtos, em que se trabalha e se utilizam recursos de forma intensa para produzir alimento e outros materiais. Nestes regimes, se tudo correr bem, a energia aplicada traduz-se em grandes quantidades de comida. Só que nem sempre tudo corre como se espera e, cada vez mais, com os modos de produção modernos e por causa das alterações climáticas que provocaram, se gasta toda a energia a impedir a sucessão ecológica a troco de produtividade e de qualidade muito inferiores às ideais.

Com vista em aumentar a eficiência e a resiliência do sistema, e contrariando a precariedade inerente à nossa relação com este terreno, começámos por pensar na água, e na sua relação com a dinâmica topográfica. Num campo normal, em que todas as protuberâncias paisagísticas são arrasadas e aplanadas, a água tanto entra como sai do sistema com muita velocidade. Regar passa a ser, por isso, um dos encargos mais comuns na maior parte dos campos de cultivo. Se não for automática, tem que ser feita à mão, e mesmo os sistemas tradicionais de regadio exigem o acompanhamento humano.

“Tá ali aquele bocado de água, acabou! Quando tenho que andar a regar, seis, sete metros... Um gajo tem que se cansar menos, se não estamos lixados.” - M

Fez-se um grande burcaco. Uma espécie de pequeno charco fundo e poroso, para onde a água se dirige e lá fica durante muito tempo sem evaporar. Dispersa-se lentamente e é absorvida pelas raízes das plantas circundantes à velocidade necessária. De repente, a rega desaparece, e o crescimento perto do lago ultrapassa o de qualquer zona plana do campo em torno. Deixa de ser necessário transportar água de um sítio para outro. A proximidade ou a distância do corpo de água permite a existência de vários nichos, nos quais diferentes espécies encontram o seu lugar. Com apenas um simples gesto topográfico, a nova dinâmica espacial resulta num acréscimo direto da biodiversidade e na eficiência do sistema a nível local.

Para segurar as margens, plantaram-se várias espécies de arbustos de bagas e pequenos frutos como groselhas, framboesas e amoras. Como numa das esquinas do campo havia já um manto de girassóis (Helianthus annuus), introduzimos o tupinambo (Helianthus tuberosus); um girassol que produz tubérculos comestíveis, parecidos com batatas, mas mais nutritivos e comestíveis até em cru. O girassol batateiro é conhecido por ser uma barreira contra espécies expansivas, como a silva, e por isso utilizámo-lo para abrandar a esta força imparável da sucessão, muito presente em todas as margens do campo. Em vez de entrarmos em guerra contra as silvas, os tupinambos ajudam-nos a contrariar a sua expansão desregrada, demarcando o território com uma frente vigorosa, competitiva, e muito produtiva. Após a implementação, só teríamos que esperar para ver como teria emergido este novo bairro perene no canto mais longínquo do terreno.

Contudo, a um dado momento, veio o trator para lavrar a terra do campo ao lado onde se iria plantar centeio; uma cultura de sequeiro, que requer terra minimamente remexida, e recursos quase nenhuns. O centeio é o cereal europeu que cresce mais alto e produz as fibras menos quebradiças. Para além de alimento, serviu de material para telhados de colmo e ainda para o fabrico de pequenos cestos, bolsas e tapetes de acento.

“A construção antiga era uma coisa, e depois agora um gajo tem que ir para os cursos e o carago... Eu não, eu é o que vem à carola... Resulta, resulta, não resulta, passa ao lado!” - M

Mesmo assim, o plano era poupar a esquina do terreno, com o lago e as suas culturas perenes, e revirar o restante. Acontece que a cultura anual está tão instaurada nos hábitos das gentes que a vontade de lavrar foi mais forte do que necessária.

“Vem um trator, lavra-me, e depois vem me frezar... Prontos! E semeio aquilo.” - A

O trator passou então a pente fino toda a terra e plantas que começavam a cumprir a sua função junto ao lago, deixando tudo literalmente revirado, e devolvendo este lugar à estaca zero da sucessão ecológica.

“Eu andei lá em baixo a plantar umas favas... a terra parecia lama!” - A

Veremos no próximo ano, se alguns tubérculos de tupinambos e alguns stolons de framboesas terão sobrevivido o massacre. É bem provável que partes viáveis destas plantas resistentes tenham começado a repovoar o terreno a partir de vários pontos dispersos. Essa é uma das características das espécies menos domesticadas: serem resistentes e resilientes, sobrevivendo a ataques e a dificuldades, insistindo na propagação de formas impensáveis, permanecendo em jogo. Na altura de cegar o centeio, descobriremos que frutos e que tubérculos poderão ser também inesperadamente colhidos.